Líquido Cefalorraquidiano e a Esclerose Múltipla
A esclerose múltipla (EM) pode ser considerada um desafio na prática diária do médico neurologista, devido às suas manifestações clínicas e evolutivas, com potencial de incapacitar adultos jovens economicamente ativos.
Na presença de manifestações clínicas e de imagens típicas ao estudo por ressonância magnética, o diagnóstico acaba sendo feito com relativa facilidade por um neurologista bem treinado. Porém, muitas vezes não é isso o que acontece, incorrendo em atraso ou ainda em erros no diagnóstico, o que leva a uma inadequada estratégia terapêutica e consequente prejuízo à saúde dos pacientes.
A limitação da abordagem diagnóstica atual se baseia no fato de não existir um marcador clínico ou laboratorial que possa garantir ou excluir o diagnóstico da EM, de maneira inequívoca.
Enquanto as técnicas de imagem são de particular importância para demonstrar lesões características de desmielinização, a análise do líquido cefalorraquidiano (ou líquor) demonstra uma inflamação crônica no sistema nervoso central, com características próprias da doença, se constituindo como ferramenta fundamental na fase investigativa da doença.
O que pode ser esperado do estudo do Líquido Cefalorraquidiano em paciente com suspeita da EM?
1) Na rotina da análise do líquor na EM
Na análise de rotina do Líquido Cefalorraquidiano, ou seja, o estudo quimiocitológico, é descrito um padrão relativamente constante de alterações em pacientes com EM em relação ao que ocorre em outras doenças inflamatórias:
a) O número de células costuma ser normal ou aumento de células discreto, geralmente abaixo de 30 células/mm3, com predomínio absoluto de células linfomononucleares;
b) O teor de proteínas totais costuma ser normal ou apresentar leve aumento, geralmente abaixo de 70 mg/dl;
c) A concentração de glicose, ou de lactato, não se altera.
2) Na análise das proteínas – As imunoglobulinas
A maioria das doenças inflamatórias do sistema nervoso central são caracterizadas pela síntese de uma proteína, denominada de imunoglobulina (IgG), e por isso, essa síntese não é característica única de uma determinada doença. Na EM existe síntese aumentada de IgG no líquor. Para uma correta análise deve ser correlacionado a quantidade de IgG no líquor e no soro sanguíneo com a quantidade de outra proteína, a albumina, do Líquido Cefalorraquidiano e do soro, razão essa denominada de índice de IgG. A literatura médica descreve que o índice de IgG está elevado em torno de 60 a 85% em pacientes com EM.
Em nosso meio, em um recente estudo realizado na cidade de São Paulo, o índice de IgG apresentou-se elevado em 52,2% dos pacientes com EM; 39,3% dos pacientes com a forma clínica remitente-recorrente e 88,8% dos pacientes que apresentavam a forma primariamente progressiva da doença.
Outra técnica utilizada para a detecção de imunoglobulinas no líquor é denominada de pesquisa de bandas oligoclonais (BOC). Este método consiste em visualizar as imunoglobulinas através de uma técnica específica denominada de focalização isoelétrica de proteínas. Além de visualizar essas imunoglobulinas no líquor, este método também compara com a imunoglobulinas do soro do paciente, que no caso da EM devem estar ausentes.
Na EM observa-se um padrão peculiar de apresentação das BOC:
a) Não desaparecem durante o curso clínico da doença;
b) Não apresentam mudanças após tratamento com imunomoduladores, corticoesteróides ou imunossupressores;
c) Não apresentam relação com os períodos de exacerbação dos sintomas clínicos (surtos).
Deve-se considerar que nas populações com alta prevalência da doença, a pesquisa de BOC tem sensibilidade alta, em torno de 80 a 95%. A latitude parece influenciar essa sensibilidade. No Brasil, em estudo recente no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, descrevemos a frequência de 54,4% de BOC em pacientes com EM e 31,2% em pacientes com o primeiro episódio clínico da doença. Quanto aos aspectos clínicos evolutivos foi constatada maior presença de BOC nas formas progressivas recorrentes (100%); seguida da forma primariamente progressiva (87,5%); secundariamente progressiva (54,5%) e da forma remitente-recorrente (44,3%).
Recomendações práticas
Em linhas gerais, o estudo do Líquido Cefalorraquidiano não tem demonstrado uma contribuição expressiva no diagnóstico da forma remitente-recorrente da EM, quando os critérios clínicos e os de neuroimagem já foram estabelecidos. Há necessidade de aprofundar a investigação com o estudo do líquor quando a clínica e as imagens não são características, ou quando os estudos de rotina no sangue apresentaram suspeita de diagnósticos alternativos.
O estudo do líquor torna-se imprescindível no primeiro episódio clínico da doença (CIS), onde os estudos mostram um aumento significativo da sensibilidade para o diagnóstico, podendo evidenciar uma maior chance de conversão para a forma clinicamente definida da EM em um menor período de tempo. Em pacientes com a forma primariamente progressiva da EM a análise do líquor também está fortemente indicada, uma vez que estudos mostram uma maior frequência de BOC e de aumento do índice de IgG, além de prestar grande auxílio na exclusão de diagnósticos diferenciais.
Não existe um marcador preciso que possa prever uma forma mais benigna da doença, ou que possa indicar um maior índice de recaídas clínicas. Atualmente, as análises do líquor não são utilizadas como rotina no controle evolutivo da doença ou para orientação terapêutica.
Dr. Paulo Diniz da Gama